Contos de Gaia:
O amor pelo sangue (pt - 1)
A terra não era fértil e a vida era difícil...
Mas isso não abalava a comunidade de Barroço. A vida seguia de forma árdua, mas para eles era normal viver daquela forma, sem vegetação abundante ou água, sem gados ou peixes. A vila era destinada a viver na miséria, mas até as divindades ficavam surpresas em ver o tanto que aquele povo lutava para se manter de pé.
Foi neste cenário que uma jovem mulher deu a luz a uma criança magra, sem cor e pouca expressão. A mãe preocupada se esforçou o máximo para nutrir seu filho e fazê-lo vingar, mas tudo o que ela tentava parecia não surtir efeito. Os pais chegaram a parar de comer para dar a sua parte ao filho, mas nada acontecia. Quando a criança completou 6 meses de vida, eles entenderam que aquela poderia ser a natureza do filho. O aspecto fraco era o normal para aquela criança, que seria frágil para o resto de sua vida.
O menino foi amado e sempre muito bem cuidado, na medida do possível para os moradores de Barroço, e cresceu bem até o início de sua adolescência. Ao completar 13 anos ele já ajudava os pais nas tarefas da comunidade, com plantio e caça, e entendeu que essa seria sua vida.
Trabalhar nas colheitas era geralmente difícil. As árvores pareciam mais rígidas, mas a verdade é que as ferramentas Barroças não eram boas. Sem corte e fracas, as pessoas não tinham recursos para fazer ferramentas melhores. Mesmo assim, o garoto tinha uma facilidade impressionante para trabalhar no cultivo, manuseando as ferramentas com mestria.
- - -
O inverno estava chegando, mas antes dele os cavaleiros de Murada vieram. O discurso repetido era temido pelas pessoas que moravam ali, mas não tinha jeito. Todo ano era a mesma coisa.
"Juntem todos na praça. Viemos fazer os anúncios e demandas do rei para a próxima estação."
As pessoas juntaram-se e ficaram atentas ao comunicado:
"O inverno está chegando! Como todos sabem, para que a capital possa sobreviver... Não, para que seu rei possa sobreviver, voltaremos aqui em algumas semanas para recolher os impostos e mantimentos que devem ser doados para Murada se segurar durante o frio.
Cumpram com o seu dever e o rei cumprirá com o dele"
Os cavaleiros foram embora, deixando apenas o desespero para trás. O Inverno mal chegou e já parecia ser mais cruel do que os últimos que se foram, mas o trabalho precisava ser feito.
Como em todos os anos, os moradores se juntaram e trabalharam incansavelmente inverno a dentro.
Ao final de 8 semanas, já era possível ver as janelas com uma camada de gelo por cima das vidraças. O Inverno estava bem próximo e Barroço não tinha sequer o suficiente para manter o seu povo vivo durante a estação gelada. Seria um trimestre difícil.
As preparações para o pagamento das taxas já haviam sido feitas, porém, eram dignas de pena. Menos de 1/4 do total do ultimo ano seria levado para Murada, e o povo não tinha ouro ou prata para doar. Fora isso, não havia sobrado quase nenhuma comida. Seria uma época de racionamento radical para os moradores. Enfim, os cavaleiros chegaram.
"Juntem-se na praça e preparem-se para os donativos. Apressem-se, não queremos ficar neste lixo de local por muito tempo"
O povo se juntou. As mãos tremendo de medo seguravam a ansiedade e aguardavam o pior. O rei não iria aceitar esta oferenda. Eis que um dos representantes dá um passo adiante para falar com os cavaleiros. O garoto pálido e esquelético está no meio da multidão, atento à situação.
"Senhores, bom dia. estes são os resultados da safra de inverno. Sinto muito que tenha sido menor do que a do ano anterior, mas o clima foi rigoroso, e nossas terras não estão boas para o plantio."
O cavaleiro desce do cavalo e vai até as carroças com comida. Cenouras e alfaces murchos, beterrabas e mandiocas quebradas enchiam o carrinho e os olhos dos moradores de desespero. O cavaleiro pega uma cenoura, morde um pedaço e cospe no chão.
"Sobrou algo para que vocês se alimentem, certo?"
O representante abaixou a cabeça em tom de agradecimento e disse:
"obrigado, nobre senhor. Sim, nós temos um pouco para nos mantermos nos próx--"
"Cavaleiros, carreguem os carrinhos com o resto dos mantimentos e vasculhem as casas. Acredito que estes vermes estão escondendo mais coisas!"
Uma comoção teve início. Pessoas correram para suas casas a fim de manter seus bens pessoais e o pouco que eles tinham. A comida dos armazéns foi carregada nas carroças pelos cavaleiros, que surravam sem piedade todos que tentavam atrapalhar ou até mesmo negociar, fosse homem, mulher ou criança.
A criança fraca estava estática. Ficou olhando sua casa ser revirada, sem reação. O que eles poderiam achar ali de valor? Será mesmo que, seja o que for que eles tivessem, teria valia para o rei? A mãe do garoto então abre uma gaveta e segura em seu braço um lenço, que o garoto logo identifica como sendo o lenço onde ela o embrulhava em seus braços quando ele era mais novo e mais frágil. O cavaleiro, vendo a mãe segurar o pano, pede para que ela entregue o bem.
"Me dê o lenço! O que é isso, linho?"
"É apenas o lenço do meu filho. Não têm valor para vocês, apenas para mim!"
O cavaleiro riu e puxou o pano da mão da mulher. A força dos dois, como em um cabo de guerra, rasgou o pano velho. A mulher começou a chorar, sua mão parecia ter dois dedos quebrados pela força do cavaleiro. A criança, imóvel, ainda observava. O pai entrou na casa e viu a cena do cabo de guerra. Enfurecido, foi para cima do cavaleiro que o imobilizou com apenas um golpe na cabeça.
O cavaleiro estava olhando seus arredores, mas sem dar muita importância para o garoto. Viu a mãe chorando sentada no chão segurando os dedos quebrados com uma das mãos, viu o pai desmaiado no outro canto da sala e viu a criança parada, imóvel, perto da porta.
Andou até a criança e fechou a porta, chutou o pai para fora do meio do caminho e, olhando para a mãe, disse:
"Vocês, vermes, não tem direitos. Vocês, vermes, estão em Barroço pois são amaldiçoados pelos seus antepassados a viver uma vida pagando pelos crimes que eles cometeram. Vocês, vermes, não tem direito ao básico, por isso que nós estamos levando seu ouro e sua comida. E agora, sua verme, eu vou tirar o direito que você tem sobre seu corpo."
O cavaleiro afasta as penas da mãe, segurando com força sobre o chão. Ela se debate, tenta fugir, mas não consegue. Ela era muito fraca comparada ao cavaleiro. Desesperada, chama pelo filho e pede por ajuda, mas o garoto segue imóvel. O cavaleiro começa a desmontar sua armadura e remover a malha de ferro com uma mão, enquanto segura a mulher com a outra. O choro de desespero dentro da casa seria insuportável para qualquer um, menos para o garoto, que seguia imóvel.
"Calma, mulher. Vai ser rápido, hahahaha! Olhe garoto, e depois comente com o seu pai como é um homem de verdade"
Nessa hora, o garoto se move. Vai até a cozinha e pega a sua foice de cortar alface. Quando volta, o homem ainda esta lutando com a mãe. A parte íntima do cavaleiro exposta o tornou vulnerável para o garoto, que fez o breve comentário:
"Repare, veja como é um homem de verdade..."
A foice sem corte deslizou pela garganta do cavaleiro como uma faca desliza sobre um tablete de manteiga. Fácil e macia. O sangue jorrado pelo chão era mais do que o suficiente para qualquer um perceber que o cavaleiro não iria mais levantar.
A mãe enxuga seu rosto choroso e olha para o filho, abraçando-o e puxando-o pelo braço para que eles fugissem. O pai, ainda desacordado, ficou estirado no chão.
Os dois pularam a janela para fugir e viram a cena do lado de fora da casa, que estava tão fora de controle quanto a que eles presenciaram lá dentro. Cavaleiros executando homens, mulheres e crianças a sangue frio e saqueando as casas dos mortos. A mãe e a criança conseguem fugir sem serem vistos e somem ao longe.
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Anos se passaram, assim como a vida sofrida que a mãe e o filho levavam. Eles conseguiram se abrigar em algum acampamento de mineradores, uma pequena vila no leste do Deserto Vermelho, que vendia os itens minerados para trazer sustento para as pessoas. Longe de Murada e longe das maldades do rei.
O garoto, agora com dezessete anos, havia mudado de agricultor para minerados. Porém, por mais estranho que isso fosse para todos os que moravam ali, ele sempre levava junto da sua picareta a foice que usou para proteger a mãe, ferramenta que nunca mais saiu do seu cinto.
As cavernas onde as escavações ocorriam eram profundas, com boa parte inexplorada, e nem mesmo as pessoas que viviam ali a anos sabiam quais minérios elas poderiam achar.
Era muito comum acharem prata ou ferro, mas ocorria de alguém encontrar ouro ou até mesmo Ametista. Era raro, mas era possível.
Eventualmente, o garoto ia mais a fundo nas minas na esperança de encontrar alguma pedra mais valiosa, que pudesse trazer alguma riqueza pra ele e sua mãe, e em uma dessas idas ele ouviu uma voz o chamar pelo nome. Guiado pela voz, ele seguiu até mais afundo, e seguiu, e seguiu, até estar envolto totalmente no breu. Quando pensou estar perdido, sem conseguir achar o caminho de volta, ele achou uma pedra brilhante, verde como esmeralda, convidando os seus olhos a admirar a sua beleza.
- Você busca riqueza, garoto? Eu posso te ajudar - sussurrou a voz em seu ouvido - Eu posso te ajudar a alcançar grandeza.
O garoto andou cautelosamente em direção a pedra e, sem muito esforço, removeu-a com a mão. Era como se ela tivesse repousando ali, colocada de propósito para que alguém a achasse.
- Como você pode me ajudar? - Perguntou o garoto, encantado pela pedra.
- Simples... Você me dá sangue, e eu te dou ouro.
O garoto ergueu vagarosamente a sua mão de encontro a pedra. Ao tocá-la, percebeu que era quente, como o fogo, chegava a ser engraçado ela ter uma voz fria.
O jovem pegou a pedra, do tamanho da palma de sua mão, e colocou em sua mochila. A caverna, que estava escura, agora estava clara como o dia. Ele também não havia ido tão fundo quanto achou.. Ou será que voltou sem perceber?
De volta ao vilarejo e com apedra na mão, o jovem se depara com uma alcateia de homens lobos invadindo o vilarejo. A foice estava pronta em sua mão sem ele sequer ter percebido.
Os uivos dos integrantes da alcateia cessaram após o líder gritar, chamando atenção.
"Entreguem os minérios!!"
Continua >>>