Contos de Gaia:
Aquele que voltou da morte
A escuridão o soltou e seus pés novamente tocaram o chão
Oju não sabia exatamente onde estava, mas conhecia as terras de Famfrit pois eram parte de seu lar e sua história. Parou por um momento para relembrar o que havia acontecido e pequenos flashes da última batalha começaram a piscar em sua cabeça.
Se lembrou de Brutus, um Zesto com uma força reconhecível, investindo contra seu corpo em um forte golpe violento. Em outro flash, lembrou que havia derrotado um outro humano.
“Eu havia pendurado este corpo no mural dos mortos, dentro da mina. Eu tenho certeza! …Como é possível?”
Por último, lembrou de uma marina. Aquele ser meio peixe, que deu uma investida com tridente, fazendo Oju abraçar a morte. “Eu estou morto?”
De repente os olhos de Oju ficaram negros. Seu corpo em transe, sem se mover, sozinho no meio do deserto, era envolto por uma sensação fria, ameaçadora, mas que de certo modo, não parecia tão nociva assim.
“Você não está morto, criança”
“Quem é você? Saia da minha cabeça!”
“Eu não estou em sua cabeça, criança. Estou no seu coração. Eu jazo, me estendo, me aconchego em seus sentimentos, que são tão sombrios quanto minha existência. Eu não estou aqui para te fazer mal. Estou aqui para te ajudar a fazer somente o que você quer fazer.”
Seus olhos se arregalaram levemente, mas ainda permanecem opacos, foscos e sem vida.
Oju relembrou a história antiga, que todos em Gaia conhecem. A história da queda e da ascensão. A história do fim da Longa Noite. Mas algo estava errado, pois os contos mencionaram que a escuridão havia caído. Como era possível que ela estivesse ali com ele, tão viva e presente?
“É isso que você pensa, criança? Que eu.. caí?
Ela podia ler os pensamentos dele, o temor em sua alma era mais arrepiante que o gelo que havia subido pela sua espinha.
“Eu fui derrotado por algo que não tem como ser vencido ou superado. A esperança consegue te dar um poder inimaginável, se quer saber. Se não fosse por ela, eu teria vencido e acabado com aquela ascensão. São falsos vencedores!”
A raiva envolta na voz que Oju ouvia tonificava o volume das falas. O rapaz, que até o momento estava assustado, agora prestava atenção em uma versão da história que ele nunca tinha escutado.
“Eu me escondi, sim. Foi necessário. Mas desde então eu planejo meu retorno, e se quer saber, ele será tão grandioso quanto foi a Longa Noite.”
Oju voltou a sentir medo. Por qual motivo, dentre todas as pessoas de Gaia, ele estava ouvindo o discurso da divindade? O que havia o Destino escrito pra ele?
“Sabe, criança… Eu vi os seus passos. As marcas pesadas, sofridas, que seus pés cansados deram na areia desde que eram pequenos, vivendo uma vida miserável e indigna.. penar para ter um prato de comida… A vida com os nômades da areia é dura, por isso que eu não o culpo por ter se tornado quem você se tornou. Afinal, todo o ódio que você juntou em sua vida deveria servir para algo, não? O corpo forte de um Zesto, quero dizer… Se impor contra um frágil humano ou vendiano deve ser fácil para você. Levantar riquezas usando este poder bruto não deve ter sido tão difícil, certo?”
Oju prestava atenção.
“Sua jornada é merecedora. Aqueles que caíram por suas mãos mereciam ter caído! Os fortes não podem dar lugar aos fracos! Eu já estava completamente interessada em você, mas a sua incursão contra os Vendianos foi o ápice de suas conquistas. Como era o nome daquele belo rapaz? Yanko?” - A voz calma na cabeça de Oju gargalhou ironicamente, como se soubesse de toda a história envolvendo os dois, do começo ao fim, até agora - “Eu sabia que aqueles fracos eram espertos, mas o lance da Pedra Granada e das Celetistas… foi mágico. Me inspirou. Ele está liderando algo grande agora, sabia? Eu só… temo pela garota, sabe? Mas isso não importa, tudo é por algo maior do que vocês.”
Oju não sabia se sentia raiva por estar sendo observado, avaliado, como um peão em um tabuleiro de xadrez, ou se sentia-se abraçado, acolhido, por ter alguém que realmente entendia suas motivações.
“Onde você quer chegar?” - Vociferou Oju, mentalmente.
“No topo, criança. Onde é o meu lugar. Derrubar aqueles que me derrubaram. E você, meu querido amigo, vai me ajudar a chegar lá”
“E se eu me recusar?”
A voz se calou. O breu tomou conta da mente de Oju mais uma vez. O vazio era gigante, por mais que estivesse somente ali dentro da sua cabeça, ele parecia infinito. Oju sentia que sua existência não tinha mais significado, propósito. Naquele momento nada mais importava. Sua cabeça só tinha espaço para o medo.
A voz vociferou de repente, em um surto repentino de ódio e desespero, como se fosse insuportável para ela pensar que algo saísse de seu controle:
“Se você se recusar, então eu devorarei sua vida e sua existência!” - Neste momento, Oju voltou a se sentir uma criança novamente. Uma criança indefesa e frágil, sozinha em meio ao deserto gélido durante a noite - “Mas… Não é isso que eu quero, criança. Não foi para isso que eu vim. Eu vim para ajudar você, como eu já disse antes.”
O corpo do Zesto parou de tremer. Ele novamente se sentiu acolhido. O que era esse poder, que mexia tão facilmente com as emoções dele? Era o simples fato da voz estar dentro da sua cabeça? Ou ele era de fato alguém facilmente manipulável?
“A pesquisa daquele Vendiano mostrou um resultado interessante quando foi testada, digamos que sem querer, por nossos Avatares. Inclusive, o que você fez ao usar a pedra que continha o poder de influência perpétua foi incrível, se me permite dizer. Se eu não tivesse tomado conta do seu corpo na hora, você teria explodido em mil pedaços. Mas foi bom presenciar aquele poder… Tanta morte com apenas um estalar de dedos… hahahahahahaha”
Oju estava feliz em ter sido reconhecido. Fazia sentido ele se sentir assim?
“As pedras tem o poder de amplificar o que tocam, porém, se elas reagiram com os Avatares, os poderes elementais e divinos acabam passando, em uma pequena proporção, para o usuário. Por isso, Oju, que hoje você detém algo que nem mesmo as divindades poderiam ter: O poder dos cinco elementos, na palma da sua mão!”
“De onde você tirou essa ideia?"
"Para mim, um ser que detém este poder, é óbvio. Você não percebeu o que houve naquela chacina em Correrio? Bom… O que precisamos agora é ampliar o seu poder. Para que enfim você conquiste a sua grandeza absoluta!”
“E por qual motivo você quer me ajudar?”
“Ora, criança. Se você se tornar absoluto, significa que nem mesmo os Avatares foram capazes de parar você. E isso dará abertura para que as divindades venham resolver o problema em Gaia, afinal, se você mata um Avatar, o próximo ciclo de reencarnação só acontecerá quando todos os Avatares estiverem mortos, já que eles reencarnam em conjunto. Com as divindades em Gaia, o caminho estará livre para que eu possa ascender novamente!”
Oju viu em sua vida um propósito, após aquela fala ser concluída. Toda a sua ira, raiva, dificuldades que teve em sua existência, finalmente, chegaram no ponto que ele queria. Fazer a diferença para algo maior que todos!
“Eu o farei”
“Ótimo, criança. Que tal começarmos por aquela que colocou um fim em sua vida?”
“Você quer dizer a Marina, a Avatar da água?”
“Sim, criança. Mas não necessariamente ela. O que fará um povo se o seu maior poder de defesa não estiver lá para protegê-lo?”
“Ele perecerá” - Murmurou Oju, confiante.
“Pois então ordene uma marcha até o Mar de Kraken! Vamos juntar mais homens e construir o maior exército que este planeta já viu!”
O transe de Oju acabou em seguida, porém sua mente não estava mais fraca.
Ele sabia o que fazer e como fazer, e desta vez, ele teria ao lado dele um aliado que nenhuma força em Gaia poderia derrotar.
Seu corpo começou a se mover lentamente rumo a algum local do deserto. Parecia sem rumo, mas desta vez ele tinha um objetivo a cumprir.